Páginas

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Poesia e globalização, de Lêdo Ivo.

POESIA E GLOBALIZAÇÃO.*
Lêdo Ivo

Nos últimos tempos, tenho sido procurado por emissários das empresas que se propõem a efetuar, em relação a mim, uma operação salvadora; fazer com que eu tenha um site na Internet. Sustentam que só dessa maneira poderei assegurar ao meu trabalho o interesse ou o reconhecimento desse outro que não é mais o leitor identificável, mas o leitor virtual, um ente ao mesmo tempo mirífico e galáxico que, em todos os lugares do mundo, aciona um aparelho chamado mouse. Num tom amigável e até protetoral, alegam que, quem não está na Internet não existe.

Para inserir-me nesta nova ordem da comunicação planetária, na famigerada mídia eletrônica, sou convidado a praticar um ato de generosidade em relação a mim mesmo, financiando a minha inclusão na Internet, a qual, segundo os especialistas, obedece a uma tecnologia específica, e não pode ser praticada por leigos.

Vários sentimentos me salteiam, diante dessas propostas. Em primeiro lugar, sinto-me um excluído, já que sou um analfabeto eletrônico. É como se eu fosse um sem-terra literário, um sem-site. Tendo começado a minha trajetória de poeta nesta cidade do Recife, na longínqua década de 40, reconheço, após tanto trabalho, que semeei no vento e lavrei nas ondas do mar. Estou diante de um mundo que, para me acolher ou aceitar, exige que eu me renda a novas formas de comunicação e expressão, a novas linguagens. Exige mesmo que eu pague para entrar nele, uma vez que uma inclusão num site é uma custosa operação financeira.

Situado entre a inclusão e a exclusão, o site e o nada, sinto que, como poeta e homem, fui atingido pela nova e inarredável evidência do mundo: a globalização. Essa palavra, como quase todas, é polissêmica. Tanto significa a nova ordem transnacional que veio para dominar os estômagos e as mentes, como o conhecimento triunfante, a lição de que só a escalada da inteligência humana tem condições de mudar o mundo e gerar a História. E os que amam as imagens oceânicas, proclamam que ela é a quarta onda.

Vivemos a época da padronização. Os aeroportos, os hotéis, os supermercados, os postos de gasolina e as livrarias são iguais em todas as partes do mundo, obedecem a uma mesma disposição arquitetônica e nos infundem a sensação ao mesmo tempo gratificante e incômoda de que somos cidadãos do mundo. Mas, nas livrarias, os livros de poemas, colocados na prateleira mais baixa das estantes, nos advertem de que o papel do poeta nessa radiosa contemporaneidade sofreu vexatória mudança. Respiramos a época do mais vendido, seja um livro ou um detergente; e o livro de poemas emerge do seu lugar humílimo como a referência de um defunto. Onde estão os jovens poetas? A poesia é hoje uma atividade clandestina, um segredo de família.

Por outro lado, cabe não esquecer que, neste mundo globalizado e globalizador em que vivemos, todo mundo é escritor, mesmo os escritores. A expressão e a divulgação da experiência humana não se limita aos poetas e romancistas. Alcança os pilotos de prova, as manicures, as cortesãs, os gurus, os artistas da televisão. Assim, pergunto-me e pergunto: O que é ser escritor ou poeta no umbral deste milênio? E como ser escritor?

No plano editorial, avulta a evidência de que o livro – cuja morte de há muito vem sendo anunciada – perdeu a sua sacralidade, já não é mais o objeto clássico e solitário do nosso ofício. Recordo que o meu editor está por mim autorizado, por contrato, a publicar e comercializar a minha obra “... em quaisquer formatos e mídias existentes e conhecidos (...) exemplificadamente: livro, CD-ROM, CD, áudio, internet, disquetes, fita DAT, ‘e-book’ (livro eletrônico), ‘áudio book’, bem como quaisquer meios digitais, óticos ou magnéticos e processos ligados a ciência informática, em quaisquer línguas, para todos os países do mundo.”.

Essa clausula global, globalizante, globalizada e globalizadora, é desmesuradamente ambiciosa, deixa-me envaidecido. Tem uma promessa de planetariedade. A minha poesia, que fala de morcegos e goiamuns, das dunas e dos navios enferrujados de minha terra natal, poderá ser traduzida para o paquistanês. Mas, ao mesmo tempo que ela proporciona uma visão magnífica de mim mesmo aterroriza-me. Sinto que, no inesperado e indesejado rito de passagem da galáxia de Gutemberg para a editoração eletrônica e a Internet, a minha identidade se desfaz ou se desfolha. Deixo de ser eu mesmo. É como se eu necessitasse de ser fragmentado ou mesmo esquartejado para alcançar o outro lado do rio.

Site e mouse – diante desses anglicismos hoje universalizados (embora os portugueses tenham naturalizado o mouse eletrônico como rato), outro temor me abala: o de que pertenço a uma cultura ameaçada pela padronização e globalização. Sinto que a minha língua nativa está ameaçada pelo latim eletrônico, que é o inglês – ou mais precisamente o inglês dos Estados Unidos da América. Cada vez mais, o grande invasor está em toda parte. Perto da Academia Brasileira de Letras, há um camelô que atrai a clientela com a tabuleta “Hot dog – aceito tickets”. E é em inglês que viajo (faço a check-in) ou tiro dinheiro do banco.

Eu poderia alongar os meus temores e incertezas. Paro aqui. Limito-me a propor a este 2º Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco as seguintes interrogações ou temas de debate:
1º) O que é ser escritor hoje? Como ser escritor?
2º) Como assegurar e proteger as nossas nacionalidades que são as somas de nossas regionalidades, as quais se expressam e são guardadas em nossas línguas nativas? Como defender e expandir a nossa originalidade, as nossas diferenças estéticas? Como ser e poder ser diverso e diferente no mundo globalizado?

Creio firmemente que há algo, no homem, do homem e para o homem, que só pode ser dito pela arte e criação poética. Sem a preservação de nossa dimensão de imaginariedade, a vida e o mundo seriam incompletos. Peçamos a Deus que o novo milênio não nos converta em dinossauros e sim em menestréis de um novo e admirável mundo novo.

* * * * *

* Palestra proferida na manhã do segundo dia do 2º Congresso Brasileiro de Escritores em Pernambuco, promovido pela UBE (União Brasileira de Escritores) – PE, que se realizou entre os dias 26 e 29 de setembro de 2000, no Mar Hotel, em Boa Viagem, Recife – PE. O texto foi gentilmente cedido pelo autor para o professor Francisco Mesquita... com o objetivo de ser divulgado na internet!!!

* * * * *

OBRA POÉTICA DE LÊDO IVO:
As imaginações. Rio de Janeiro: Pongetti, 1944.
Ode e elegia. Rio de Janeiro: Pongetti, 1945.
Acontecimento do soneto. Barcelona: O Livro Inconsútil, 1948. (2ªedição – incluindo Ode à noite – Rio de Janeiro: Orfeu, 1951. 3ª edição – Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1966).
Ode ao crepúsculo. Rio de Janeiro: Pongetti, 1948.
Cântico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. (2ª edição – Rio de Janeiro: Orfeu, 1969).
Linguagem. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. (2ª ed. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1966).
Ode equatorial. Niterói: Hipocampo, 1951.
Um brasileiro em Paris e O Rei da Europa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. (2ª ed. Rio de Janeiro: Orfeu, 1968).
Magias. Rio de Janeiro: Agir, 1960.
Uma lira dos vinte anos (contendo: As imaginações, Ode e elegia, Ode ao crepúsculo, Acontecimento do soneto e Ode à noite). Rio de Janeiro: São José, 1962.
Estação Central. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1964. (2ª ed. Rio de Janeiro: Orfeu, 1968).
Finisterra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
O sinal semafórico (contendo: de As imaginações a Estação central). Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
O soldado raso. Recife: Pirata, 1980. (2a ed. – aumentada. São Paulo: Massao Ohno, 1988.)
A noite misteriosa. Rio de Janeiro: Record, 1982.
Calabar. Rio de Janeiro: Record, 1985.
Mar oceano. Rio de Janeiro: Record, 1987.
Crepúsculo. Rio de Janeiro: Record, 1990.

ANTOLOGIAS
Antologia poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1965.
50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro: MEC, 1966.
Central poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
Os melhores poemas de Lêdo Ivo. São Paulo: Global, 1983. (2a ed. 1990).
Cem sonetos de amor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
Antologia poética. (Org. Walmyr Ayala). Rio de Janeiro: Ediouro, 1991.

Nenhum comentário:

Postar um comentário