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quinta-feira, 22 de julho de 2010

LUÍS JARDIM

LUÍS JARDIM, CENTENÁRIO E PÓS-MODERNO*

Francisco Mesquita

Em que pese a contradição inicial do título deste texto (uma vez que o pós-moderno liga-se ao contemporâneo, à novidade), pretendemos abordar algumas características da obra de Luís Jardim no intuito de destacar o caráter atemporal e atual de seus textos. Por uma questão meramente didática, estaremos nos detendo apenas nos contos escritos por esse autor.

Luís Jardim nasceu em Garanhuns, no dia 08 de dezembro de 1901, mas transferiu-se para o Recife, na adolescência (devido à hecatombe). E, em 1936, mudou-se para o Rio de Janeiro. Já em 1938, ganhou o Prêmio Humberto de Campos, com o livro Maria Perigosa; superando, inclusive, o livro Sagarana, de Guimarães Rosa.

Com a publicação desse livro, Luís Jardim alcançou a consagração e o reconhecimento imediatos. Mário de Andrade, Wilson Martins e Monteiro Lobato foram alguns dos muitos críticos da época que louvaram o seu livro de contos, alçando-o ao nível de um restrito número de escritores brasileiros.

A obra jardiniana teve, portanto, além de suas características particulares, a responsabilidade de inaugurar um novo percurso nas letras modernistas (e, particularmente, nordestinas): o conto. A literatura modernista, especificamente da 2ª fase – a do Regionalismo (da década de 30) – revelou diversos romancistas, entre os quais: Gilberto Freyre, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Mas, para além das divergências estilísticas, o nosso regionalismo não produziu grandes contistas... Até o surgimento de Luís Jardim.

Maria Perigosa é um livro que atravessou gerações (de 1938, teve uma 2ª edição (ampliada) em 1959, e alcançou a 6ª edição em 1981), apesar disso não é muito conhecido da atual geração de leitores (nem mesmo entre seus conterrâneos). Também Luís Jardim atravessou gerações como escritor, tendo publicado: As confissões de meu Tio Gonzaga (romance, 1949), Isabel do Sertão (teatro, 1959), O meu pequeno mundo (memórias, 1979) e O ajudante de mentiroso (novela, 1980). Ou seja, a multiplicidade da obra jardiniana pede um levantamento crítico muito mais amplo e aprofundado do que este breve recorte que ora efetuamos.

Jardim vivenciou as transformações da Modernidade e da Pós-Modernidade literárias. O sertão em que se movem algumas de suas personagens reflete os sertões de José Lins do Rego, de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa etc. Por conta disso, muitas das características da obra jardiniana atravessam os limites (nem sempre tão visíveis) entre a Modernidade e a Pós.

A modernidade ficou marcada por uma série de experimentalismos – resquícios das Vanguardas –, embora alguns dos quais já não fossem novidades. Uma das mais sólidas (e inquietantes) conquistas no âmbito da narratividade foi a incorporação do “fluxo da consciência”, facultando maior liberdade ao narrador e às personagens ficcionais.

Apesar de haver, ainda, uma certa confusão entre a Modernidade e o Modernismo, podemos simplificar a questão ao seguinte: a 1ª corresponde a uma tomada de consciência do código estético, a uma nova postura litero-ideológica perante o mundo; o 2º é um movimento artístico iniciado nas primeiras décadas do século XX.

Fato semelhante ocorre com o fenômeno da Pós-Modernidade (ainda mais difícil de demarcar). A expressão “pós-modernidade” começou a ser usada na década de 50, no âmbito da Arquitetura, para designar uma proposta complexa e plural, soma de diferentes contribuições. O pós-moderno liga-se, portanto, ao pós-industrial e às novas tecnologias da informação e da comunicação. Para alguns críticos, entretanto, nos países subdesenvolvidos, as transformações nas ciências e nas artes (entre elas, a literatura) não atingiram de forma geral nem a modernidade nem a pós-modernidade. A pós-modernidade desdobra-se, pois, em vários “tempos” e várias “realidades” neo-contemporâneas, associados às condições histórico-literárias individuais de cada nação, de cada povo. Não é à toa que algumas características da Modernidade se (con)fundem com as da Pós.

A pós-modernidade literária abarca, portanto, no caso da Literatura Brasileira: as vanguardas tardias e todas as tendências contemporâneas. Conforme Tânia Pellegrini e Marina Ferreira (1996), entre as várias/ múltiplas características da pós-modernidade estão: a utilização de um código contraditório e labiríntico; a tomada de posições pluralistas, fragmentárias e inclusivistas; o fim do individualismo e a diluição das diferenças convencionais; a paródia da história; a exploração da arte cibernética; a eliminação da experiência subjetiva; etc. E muitas dessas características podem ser facilmente encontradas na obra jardiniana – que se encontraria, pois, à frente de seu tempo.

Uma das características mais marcantes da Pós-Modernidade é o desenvolvimento das narrativas curtas (conto e crônica); talvez pela brevidade, que muito bem se adequa ao espírito contemporâneo (ou àquilo que Italo Calvino (1990) denominou de “propostas” para um bom texto no novo milênio: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade). E foi exatamente nesse gênero (o conto) que Luís Jardim abrilhantou nossa literatura (tão carente de bons contistas, àquela época).

Dotado de um estilo precioso, Luís Jardim traduz um desejo de nordestinidade com uma expressividade universal. Suas personagens são populares, mas delineadas por grande vigor; a abordagem dada às mesmas antecipara a introspecção psicológica que faria escola durante o nosso Regionalismo. Suas descrições são permeadas de uma plasticidade ímpar; suas narrativas, do talento de um contador. As paisagens refletem um pouco do Agreste e da infância, matizando os textos com o lirismo de sua cultura. Além disso, uma leveza poética e uma simplicidade lúdica dão os acordes finais à escritura desse pernambucano. Os textos de Luís Jardim perpassam, pois, a originalidade da erudição popular, com toda sua espontaneidade e carga imagética. Tais características marcam também a obra do argentino Julio Cortazar, por exemplo, um dos maiores contistas da contemporaneidade.

Maria Perigosa é um livro composto por treze contos. Todos eles apresentam uma densa homogeneidade temática, revelando situações típicas da região sertaneja/ agrestina. Além disso, a carga dramática revelada pela linguagem jardiniana fomenta o imaginário popular e a psicologia humana, através de narrativas e personagens muito bem entretecidos. O resultado é um leve teor tragicômico, que tece muito da ficção de Luís Jardim.

São flagrantes a inquietação, o desejo e a acomodação presentes em personagens como Lula ou Maria (em “Maria Perigosa”). Sonham acordados (como o Gonzaga, d’As confissões de meu tio Gonzaga) e fazem desses sonhos suas vidas: Maria, pequena órfã, sonhava com um dente de ouro – chegara a usar papeizinhos de cigarro nos dentes para imitar o ouro – e trocou o próprio corpo pelo dente (que cairia depois, e a faria voltar a sonhar, viver de lembranças). Lula, por sua vez, acreditava na existência de fadas e conversava com plantas e animais, na sua meninice garanhuense.

Tais características, que não abarcam toda a beleza das personagens, servem, pelo menos, para ilustrar o trabalho desenvolvido por Luís Jardim na evocação da psicologia e patologia humanas. É o resultado da utilização de uma linguagem enxuta e sugestiva, que se metamorfoseia, fragmentando-se e diluindo-se na constituição das narrativas. Até mesmo a subjetividade dos agentes ficcionais é plural: Quem nunca se flagrou sonhando acordado como Lula, Maria, Gonzaga,...?! Dessa forma, a estrutura aparentemente simples e despojada de “literatura” desistoriciza o texto, tornando-o um enigmático labirinto.

Quanto do inusitado, quase fantástico ou maravilhoso, percorre os contos de Maria Perigosa. São enigmáticas, por exemplo, as figuras do Capitão João Leite, e seu encorajador “chapéu-do-chile” (em “Coragem”), ou de Alípio, e seu (in)quieto cavalo Pirilampo (em “Coisas da noite”), que cruzam caminhos noturnos e são atordoados pelas surpresas do amanhecer; também as figuras non-sense do defunto Vicente dos Anjos, que adoenta o Ladrão Manuel Três Braças (em “O ladrão de cavalos”, e d’o homem que galopava, do qual se conhecia apenas a aparência e o cavalo (em “O homem que galopava”). O desejo de ultrapassar os limites, as serras, os horizontes faz com que Vicência se apaixone pelo aboio de João Toté, mas ao final resta-lhe o enceguecimento e o sonho desfeito (em “Paisagem perdida”).

São intrigantes, ainda a presença de personagens com o nome de Lula (apelido de Luís!) e de personagens-meninos. Há quatro aparições da personagem Lula; e sempre diversas nos quatro contos. Já os meninos parecem como narradores em três contos; num deles, é o próprio Lula (“A doideira”). A sensibilidade poético-infantil norteia as remembranças de Luís Jardim; o Agreste arvora-se e aflora nostalgia contagiante; mas, reflete as passagens e ficagens de toda infância, em qualquer lugar.

No conto “Conceição”, o sonho de Pedrinho (de crescer, para namorar a empregada) confunde-se com a própria realidade, como nos demais. Conceição alimenta os desejos do menino, aproveitando-se disso. Já em “O castigo”, o sobrenatural se interpõe à narrativa: o medo de ser castigado pelo “pecado” cometido faz com que Lula se submeta à dominação da irmã. O desfecho poético desmancha o clima inicialmente tenso, diluindo as diferenças.

Todos os contos exploram sobremaneira a imaginação das personagens, fazendo-as espelhar um universo bastante característico ao ser humano: seus sonhos – com todas as suas vontades e receios. Luís Jardim exerceu assim, com maestria, a redenção psicológica (humanística) da sensibilidade, da originalidade, da tirania, da inocência, enfim, da vida das suas personagens.

Nesta visão panorâmica, não podemos deixar de destacar o papel que a linguagem (a forma) assume em todos os textos de Luís Jardim: o comum não é tratado como um qualquer, mas como particular. A linguagem é quase uma personagem (uma para-personagem?!), que instiga o acompanhamento dos textos até o seu final; provocando, sujeitando-se, aliciando. O livro abre-se como um convite à novidade do trivial, ao inusitado do conhecido, caracterizando-se como um jogo plural e envolvente. Múltiplo, como os contos (e as personagens) de Maria Perigosa.

A força e a beleza dos textos de Luís Jardim só encontraram um emparelhamento, em Pernambuco, com as publicações de Hermilo Borba Filho e Osman Lins (que também se vêem pouco lembrados!). Por conta disso, urge o momento de revivermos e reverenciarmos o centenário e a pós-modernidade de Luís Jardim.

Referências:
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
GOMES, Lenice. “(Re)Vivendo Luís Jardim”. In: ANAIS do I Encontro Cultural do Agreste Pernambucano. Francisco Mesquita & José Ricardo Paes Barreto (Orgs.). Recife: Cia. Pacífica, 2001.
JARDIM, Luís. Maria Perigosa: contos. 6ª ed. ilust. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
PELLEGRINI, Tânia & FERREIRA, Marina. Português: Palavra e Arte. São Paulo: Atual, 1996. vol.3.
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* Artigo publicado na Revista Encontro, do Gabinete Português de Leitura.

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